Yazd, Irão - já não há abutres

A cultura de um povo, não vê só pela gastronomia, vestes, cultura ou pela sua música.
Os rituais de de morte fazem intrinsecamente parte dele, através daquilo que lhe é mais natural e essencial: a religião.
Eles e ela fascinam-me. É como os rostos. Ao olhar para eles vejo pormenores que não estão no meu, mas que me ajudam a ver o lado B dele.
Ver como a morte é interpretada, ritualizada noutros países, noutras culturas, ajuda-me a perceber, a enfrentar minha própria morte.

Vi como na Bolivia celebravam o Dia dos Mortos, a arte sofisticada dos túmulos no cemitério Pére-Lachaise de Paris, o super lotado cemitério otomano Eyüp de Istanbul, as espantosas ghats crematórias de Varanasi, a forma descontraída e natural como se vê túmulos nos arrozais cambojanos e vietnamitas ao lado das pessoas que neles trabalham e naturalmente a forma pesada como o ocidente a vive.
Em Yazd, ao subir às Torres do Silêncio, as Dakhmeh, iria ter um vislumbre de como uma das religiões mais antigas do mundo, encara e vive a morte: o zoroastrismo fundado pelo Profeta Zoroastro, também conhecido por Zaratustra, há mais de três mil anos.

Muitos afirmam que a genuína religião persa, não é ao contrário do que se pensa, o islão, mas sim o zoroastrismo. Até ao ano 700, altura em que o islão entrou definitivamente na Pérsia, obrigando muitos zoroastras a fugirem da antiga Pérsia, principalmente para a Índia, ela unia todo o país.
Actualmente estima-se que existam em todo o mundo cerca de cento e quarenta e cinco mil praticantes deste religião. Dos quais cerca de trinta mil viverão no Irão, e setenta mil na Índia, estando o restante espalhado pelo mundo inteiro.


Há duas premissas que têm de ser conhecidas para perceber os rituais fúnebres dos zoroastras:
os quatro elementos; terra, ar, água e fogo; são sagrados e na morte o corpo humano é considerado imundo e impuro. Está impregnado de demónios e espíritos malignos (nasu) que o fazem envelhecer, que lhe trazem uma progressiva decadência física. Não é digno de ser enterrado, atirado à água ou cremado e ter as cinzas espalhadas por quebrar a sacralidade que está associada aos quatro elementos.
Como elaborar uma cerimónia fúnebre nestas condições? Através das "dakhmeh" e realizando o "dokhmenashin".

As dakhmeh são o nome persa das Torres do Silêncio, os cemitérios zoroastras, e dokhmenashin o ritual fúnebre que lhes está associado.
No topo de colinas, em zonas áridas eram erigidas estruturas circulares, as dakhmeh. São torres abertas, sem cobertura, onde são colocados os mortos. Têm muralhas com cerca de cinco metros de altura, com um diâmetro que pode ter várias dezenas de metros.
No interior destas torres existem três círculos concêntricos pavimentados: no exterior são colocados os homens, no central posicionam-se as mulheres e no círculo mais interior é destinado às crianças. No centro deles e da torre, existe um poço.

O dokhmenashin, o cerimonial fúnebre dita que, se possível no próprio dia da morte, os corpos sejam colocados nos respectivos círculos e despojados da roupa que é queimada e fiquem expostos aos elementos naturais e à disposição de corvos e aves necrófagas, por excelência os abutres.
Estas aves reverenciadas pelo zorastrismo procediam à descarnação, à limpeza do corpo impuro, até que só restasse os ossos limpos da carne.
Canais rasgados nos círculos conduzem os fluidos corporais para o interior do poço. Após os ossos estarem completamente limpos, são nele depositados até à sua desintegração final, frequentemente acelerada com adição de ácido ou cal, ou ainda colocados em ossários.

Milénios de prática de rituais de morte esbarraram com a modernidade pouco tolerante do século XX.
Desde há cerca de quarenta anos que em Yazd, que as Torres do Silêncio deixaram de ser utilizadas pelos zoroastras.
O crescimento urbano, a pressão demográfica, a exigência de melhorias das condições sanitárias e o incómodo da presença da morte de uma forma tão próxima e crua, fizeram cair estes rituais.
Os abutres também pagaram um preço elevado por esta modernidade recém chegada e agressiva. Ela fez recuar os seus territórios, afastou-os das torres, na mesma medida que a urbanidade se aproximava delas.

Os parsis, nome que os zoroastras têm na Índia, de Mumbai onde existe uma das duas torres do silêncio do país em funcionamento, enfrentam uma contrariedade séria que a modernidade lhes impõe. As populações de abutres também praticamente desapareceram dos céus. A descarnação dos corpos é feita fazendo concentrar o calor do sol sobre os corpos. De novo, coloca-se um problema sanitário. A decomposição do corpo é muito mais lenta sob acção do sol, do que sob os bicos das aves necrófagas. O cheiro é intenso e persistente, há grande quantidade de moscas e a saúde pública é colocada em risco.
Esta alternativa enfrenta um obstáculo adicional e óbvio: nos dias de inverno, nublados, chuva ou tempestade não há geração de calor suficiente para decompor o corpo.
Há crentes que optam por túmulos de betão. No entanto a eficácia da contenção da contaminação dos solos por parte do corpo impuro é fortemente questionada.
A aposta dos zoroastras é voltar ao que eram antes da sofisticação chegar às cidades. Recuperar a população de abutres e outras aves necrófagas, fazer de novo recuar as torres para zonas isoladas, longe das metrópoles, longe dos olhares inquisidores e das exigências sanitárias de quem lá vive.


Quando o táxi parou mesmo junto à porta, ligeiramente aberta numa vedação feita de arame entrelaçado, duas torres, uma à esquerda e outra à direita, captaram a minha atenção por se destacarem pela sua altura e imponência no paisagem.
Sabia que não os ia encontrar mas instintivamente procurei por eles. Pelo seu grosso e alongado pescoço, os olhos intensos e penetrantes, o bico forte e curvado, as asas longas e largas. Nem um sinal da presença dos abutres.
O chão que piso é de areia meio avermelhada, o trilho que conduz às torres é longo e inclinado. Na base há um complexo de edifícios. Aqui residem os sacerdotes, situam-se os ossários e onde os mortos são preparados e a sua roupa queimada. Os familiares despedem-se dos seus mortos. Poucas pessoas estão autorizadas a levar ou acompanhar os corpos para as torres.

Enquanto subo para a torre do lado direito, um grupo de miúdos com bicicletas e com uma energia inesgotável, sobe e desce várias vezes a totalidade do trilho desde a torre até lá abaixo. O sol pôr-se-à e eles ainda andavam na vertigem da descida.
Do topo vê-se Yazd. Um cidade industrializada, alcatroada, a sufocar, a confinar as dakhmeh a um espaço cada vez mais confinado.
Dentro delas vejo as paredes rudimentares, os três círculos concêntricos e o poço. Quarenta anos de desuso e abandono apagaram todas as marcas das cerimónias que nela ocorreram e fizeram esboroar pedaços das paredes. O poço está quase coberto por areia e pedras. Um grupo de iranianos ouve explicações de um guia improvisado.







Quase encostado às paredes percorro o perímetro imaginando o ambiente e os passos do ritual: os corpos a serem carregados para a torre, a sua disposição no interior, a atmosfera densa, quase irrespirável, o som grave do bater de asas a chicotear o ar, o estridente grasnar das aves, uma possível disputa sobre um corpo mais apetecível e farto, o fedor húmido e insuportável que exala do interior do poço.

Não estou chocado, ou impressionado com meu filme imaginado. No Tibete, o país mais alto do mundo, com um média de altitude que ronda os quatro mil e quinhentos metros, a morte não tem rituais bem definidos. Por o solo estar permanentemente congelado, os corpos são abandonados nos topos das colinas e montanhas. Os ossos são partidos com machados e bastões e a carne previamente cortada e arrancada dos mesmos. Tudo para facilitar o trabalho das aves necrófagas. O corpo com as temperaturas baixas da altitude decompõe-se muito lentamente.
Os budistas chamam-lhe o Enterro Celestial.




Assisto ao pôr do sol. Algo monótono, longe de ser emocionante.
Os miúdos continuam a subir e descer com as bicicletas. Manchas difusas que fazem saltar a gravilha do chão quando passam por mim. Cá em baixo, cinco muçulmanos fazem a oração do final de tarde.
"Eis uma cena castiça", pensei eu. "Uma oração a Alá em terreno sagrado para os zoroastras".
Quando eles acabam falamos um pouco. Cheio de curiosidade, pergunto-lhes: "Sendo muçulmanos porque vieram até aqui, às torres fúnebres dos zoroastras?"
Assim que fiz a pergunta percebi que ela era idiota porque estavam lá pelos mesmos motivos que os meus:
- "Viemos conhecê-las. Sabíamos que existiam mas nunca estivemos em nenhuma." Óbvio.




De cabeça baixa, caminho lentamente em direcção à saída absorto nos meus pensamentos. De vez em quando viro-me para trás para olhar as Torres do Silêncio. De novo compreendi um pouco mais a minha morte. Gosto de pensar que ela irá suportar e dar origem à vida, tornando-se útil. Ser descarnado por abutres não me desagrada de todo. Ao alimentar-se de carne morta eles desempenham um papel importante na limpeza e higiene dos ecossistemas, mantendo-os saudáveis.
A cremação não me choca mas parece-me ser algo redutor e pouco fascinante. Apenas sobram cinzas e elas não me parecem ser particularmente úteis e saborosas para seres vivos.

Os zoroastras encontram-se presentemente na corda da bamba. Há quem aponte que se estes rituais se perderem por impossibilidade de encontrar alternativas aceitáveis para a religião do profeta Zoroastro, esta perder-se-á com eles.
Que reflexões lhes suscitará ao longo da vida, como ela própria será vivida sabendo que a sua morte dificilmente será como a crença preconiza? Que a sacralidade dos quatro elementos poderá estar em causa? Provocará ansiedade e tormentos? Aflição? Julgar-se-ão imerecedores do seu destino final? A transição para o eterno sagrado estará comprometida? Uma condenação eterna?


Ao cruzar a porta para a rua, o senhor que estava lá, olhou-me com ar irritado: tinha lá estado quase uma hora a mais sobre o fecho do recinto. Os muçulmanos ainda ficaram por lá.


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